Pular para o conteúdo principal

#c2 | Sobre esperança

É hábito comum consagrarmos à esperança um estado de desejo estático, figurativo e preso ao tempo. Esquecemos que a força realizadora é a sua alma e pulso. Talvez, por isso, no esperar apenas, desesperançamos.
A cabeça pesa com medo, ansiosa. Pés imobilizados apenas deslizam nas próprias angústias. Mãos ferem e se ferem. Trêmulas, nada suportam. Coração estufa o peito de dor. E a mente estrangula a alma, e aos gritos impõe a ordem da intolerância, inconstância, inconsequência de existir num vagar escuro do despenhadeiro do destino.
Esperança é ato primeiro, âncora de consciência à alma e que dá alimento aos sonhos e dimensão a um vigor extraordinário, capaz de pô-los em movimento numa jornada em que cada passo conta, fortalece, transforma e aponta o passo seguinte.
É assim que a nossa respiração segue no compasso adequado à vida. É com essa imagem que respondo ao questionamento que me foi feito, tempo desses, sobre como me mantenho uma pessoa esperançosa.
Penso que a imagem do movimento e ação me lembra que esperançamos para algo, um fim comum. Ou simplesmente um para quê.
Certamente não para aterrorizar o mundo com culpa. Nem para negar a força da inteligência, que dá à humanidade capacidade de promover saúde às existências sobre e sob a terra. Não foi para esticarmos as dores humanas por meio de sistemas injustos e que fomentam mortes.
Certamente não para vitaminar a opressão de mulheres e dos diferentes naquilo que apontamos, ainda, a obscura normalidade. Tão pouco é para a desconexão da existência humana com a terra, da qual é parte e cujo cuidado lhe foi confiado. Antes, a premissa elementar é que essa mordomia seja exercida a partir da valorização dos seus mistérios, sua força, suas vozes, suas expressões.
Fico imaginando que a esperança opera esse movimento de despertar da consciência. E se faz como a semeadura.
Nessa imagem, que é conhecimento contínuo e movimento, porque eu esperanço na força da terra, não a contamino. Antes eu aro, eu semeio, eu guardo e aguardo o ciclo da vida. E então, colho, me alimento e dou a outro oportunidade de também se nutrir. E deixo a terra descansar e semeio novamente. Pois quando não respeitamos o ciclo da terra ela deixa de acolher sementes ou, algumas vezes as acolhe no seu ventre, mas gera fruto doente, fraco, incapaz de se reproduzir em vida.
Incompleta, estéril fica. Não é assim a nossa vida em sociedade?
"A esperança traça a linha do horizonte", canta Flavia Wenceslau, e assim, acredito que nos orienta a caminhada. Não é um não saber. A gente vai, ciente das dificuldades, dos choros, até de traições, mas a esperança nos possui e nos movimenta.
Se nós perdemos esperança, então o que faz sentido é a morte, em passos de abandono do que somos, do desprezo aos propósitos comuns, do valor e potência da diversidade, das desnecessidades às pausas. Coração solo pedregoso, talvez seja o final.
Agora, se a esperança nos habita e faz morada serena em nós, a força do acreditar nos movimenta a um para que da vida comunitária que nos torna sublime humanidade e dá sentido a cada ciclo que nos é dado vivenciar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Democracia e representatividade: por que a anistia aos partidos políticos é um retrocesso

Tramita a passos largos na Câmara dos Deputados, e só não foi provado hoje (2/maio) porque teve pedido de vistas, a PEC que prevê anistia aos partidos políticos por propaganda abusiva e irregularidades na distribuição do fundo eleitoral para mulheres e negros. E na ânsia pelo perdão do não cumprimento da lei, abraçam-se direita e esquerda, conservadores e progressistas. No Brasil, ainda que mulheres sejam mais que 52% da população, a sub-representação feminina na política institucional é a regra. São apenas 77 deputadas entre os 513 parlamentares (cerca de 15%). E no Senado, as mulheres ocupam apenas 13 das 81 cadeiras, correspondendo a 16% de representação. Levantamentos realizados pela Gênero e Número dão conta que apenas 12,6% das cadeiras nos executivos estaduais são ocupadas por mulheres. E nas assembleias legislativas e distrital esse percentual é de 16,4%. Quando avançamos para o recorte de raça, embora tenhamos percentual de eleitos um pouco mais elevado no nível federal, a ime...

Narrativas. Vida. Caos. Desesperança.

  Quando eu era pastora repetia com muita frequência, aos membros da igreja, sobre a necessidade de submeterem o que ouviam de mim ao crivo do Evangelho, aprendi isso com o bispo Douglas e com o Paulo, o apóstolo rabugento (e por vezes preconceituoso), mas também zeloso com a missão cristã assumida. Outra coisa que eu repetia era que as pessoas só conseguiriam se desenvolver se exercitassem a capacidade de pensar. Nunca acreditei num Deus que aprecia obediência cega, seres incapazes de fazer perguntas. E cada vez mais falo a Deus que se ele não conseguir se relacionar com as minhas dúvidas, meus questionamentos, as tensões do meus dilemas e mesmo cada um dos incontáveis momentos em que duvido até dele, então ele não é Deus. Será apenas um pequeno fantasma das minhas invencionices mentais, portanto, irreal. E por que isso aqui da gaveta das minhas convicções e incertezas? Assim? A nossa História é basicamente um amontoado de narrativas. Ora elas nos embalam na noite escura e fria. O...

Reforma?

Daqui 11 dias celebraremos 505 anos da reforma protestante.  Naquele 31 de outubro de 1517 dava-se início ao movimento reformista, que dentre seus legados está a separação de Estado e Igreja. É legado da reforma também o ensino sobre o sacerdócio de todos os santos, na busca por resgatar alguns princípios basilares da fé cristã, que se tinham perdido na promíscua relação do poder religioso com o poder político. E, co mo basicamente todo movimento humano de ruptura, a reforma tem muitas motivações e violência de natureza variada. No fim, sim, a reforma tem sido muito positiva social, política, economicamente e nos conferiu uma necessária liberdade de culto.  Mas, nós cristãos protestantes/evangélicos, teremos o que celebrar dia 31?  Restará em nossas memórias algum registro dos legados da reforma? Quando a igreja coloca de lado seu papel de comunidade de fé, que acolhe e cura pessoas e passa a disputar o poder temporal, misturar-se à autoridade institucional da política, e...