Pular para o conteúdo principal

Escuta é conexão

Sempre fui observadora. Talvez isso me tenha dado boa audição que, tenho percebido nos últimos tempos não tão boa assim. Vezes a perco, depois recupero. E vamos assim, ciclicamente.

Na escola eu ficava muito irritada com os colegas e seus recorrentes pedidos para que professoras e professores repetissem palavras e frases dos ditados.

Não sei como, mas cedo desenvolvi uma técnica: primeiro escutar com muita atenção, a palavra e mesmo frases, e só depois escrever. Em muitas ocasiões eu perdia uma palavra e só lá na frente a recuperava. Raramente eu pedia repetição.

Alguém dirá: todos fazemos assim. Não. Não todos. Aliás, bem poucos. A regra geral é a pessoa esboçar a fala e já querermos terminar o todo da sua expressão. Especialmente se há demanda de relógio, a que atribuímos tempo. Como nos ditados da escola, que normalmente vinham com um "benefício" para quem terminasse primeiro e errasse menos.

O resultado efetivo sempre foi que os apressados erravam mais, demoravam mais. Há outras perspectivas que podem se exploradas desse contexto. Detenho-me àquela do começo.

Rubem Alves escreveu sobre haver muitos cursos de oratória quando talvez a demanda do tempo pedisse mais escutatória. Acho isso genial.

Deter-se ou dedicar-se à escuta é, antes de qualquer coisa, uma devoção interior significativa. Requer silenciar pensamentos, aquietar a alma, conectar habilidades (ou desconectar). Tudo voltado para dentro e, numa ação profundamente extraordinária, entregar-se ao externo - que pode ser um ambiente ou pessoas - de modo inteiro e poderoso.

Esse processo interno mal feito ou não feito atrapalha ou mesmo impede o externo. Teremos muito ou completa dificuldade na conexão com o outro ou aquilo que fora nos ocorre ou é dito porque o nosso interior estará em alvoroço.

Não durmo com barulho (a não ser vencida pelo cansaço) e acordo facilmente com ruídos. Os mais diversos e inusitados. Não me assusto tanto com barulhos, talvez porque é meio natural, para mim, tentar compreendê-los e reconhecê-los.

Na minha nova residência estou fazendo um exercício novo de escuta. As vozes aqui já as tive comigo, algumas, quando era criança. Algumas reconheço. Outras são completamente novas e me causam frisson e até receios e medos. Mas tenho me dedicado a ouvi-las, traduzi-las em escuta com significado porque o meu mundo tem falado demais, o tempo todo, mas dito muito pouco.

Falar sem tradução coerente quase sempre é apenas barulho que impede a escuta e, por isso, se transforma em apenas gritaria - ansiosa, desesperada, precipitada, em turba - cujo resultado é a rouquidão. Voz sem compreensão e com muitas dores.

Escuta é conexão. Fruto de processo interior e anterior ao som capturado pelos ouvidos.

Escuta, às vezes, prescinde ouvir. Noutras tantas podemos fazê-la com os olhos, com o toque.E quando isso acontece podemos escutar mesmo sob ruídos indesejáveis, como estes da morte, do desemprego, do apagão moral das autoridades públicas, da violência, das ruas à procura de algum sentido, e mesmo da indiferença em tantos mundos que nos gritam. 

Não será este o tempo de tentarmos a escuta para além dessa captura auditiva que nos habituamos fazer?

Ou vamos pedir o velho "repete, não entendi", num ciclo sem sentido e sem razão?

Hoje almocei somente às 15h30. Depois parei um pouco para tomar sol. Sentei. Fechei os olhos. Aquietei. E me vi sorrindo feito besta, sozinha. Eu reconheci um pássaro enquanto ele andava do lado. De olhos fechados. Fiquei tão feliz. 

Os sons ao meu lado me diziam da conexão com o meu lugar que se faz lar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Democracia e representatividade: por que a anistia aos partidos políticos é um retrocesso

Tramita a passos largos na Câmara dos Deputados, e só não foi provado hoje (2/maio) porque teve pedido de vistas, a PEC que prevê anistia aos partidos políticos por propaganda abusiva e irregularidades na distribuição do fundo eleitoral para mulheres e negros. E na ânsia pelo perdão do não cumprimento da lei, abraçam-se direita e esquerda, conservadores e progressistas. No Brasil, ainda que mulheres sejam mais que 52% da população, a sub-representação feminina na política institucional é a regra. São apenas 77 deputadas entre os 513 parlamentares (cerca de 15%). E no Senado, as mulheres ocupam apenas 13 das 81 cadeiras, correspondendo a 16% de representação. Levantamentos realizados pela Gênero e Número dão conta que apenas 12,6% das cadeiras nos executivos estaduais são ocupadas por mulheres. E nas assembleias legislativas e distrital esse percentual é de 16,4%. Quando avançamos para o recorte de raça, embora tenhamos percentual de eleitos um pouco mais elevado no nível federal, a ime...

Narrativas. Vida. Caos. Desesperança.

  Quando eu era pastora repetia com muita frequência, aos membros da igreja, sobre a necessidade de submeterem o que ouviam de mim ao crivo do Evangelho, aprendi isso com o bispo Douglas e com o Paulo, o apóstolo rabugento (e por vezes preconceituoso), mas também zeloso com a missão cristã assumida. Outra coisa que eu repetia era que as pessoas só conseguiriam se desenvolver se exercitassem a capacidade de pensar. Nunca acreditei num Deus que aprecia obediência cega, seres incapazes de fazer perguntas. E cada vez mais falo a Deus que se ele não conseguir se relacionar com as minhas dúvidas, meus questionamentos, as tensões do meus dilemas e mesmo cada um dos incontáveis momentos em que duvido até dele, então ele não é Deus. Será apenas um pequeno fantasma das minhas invencionices mentais, portanto, irreal. E por que isso aqui da gaveta das minhas convicções e incertezas? Assim? A nossa História é basicamente um amontoado de narrativas. Ora elas nos embalam na noite escura e fria. O...

Reforma?

Daqui 11 dias celebraremos 505 anos da reforma protestante.  Naquele 31 de outubro de 1517 dava-se início ao movimento reformista, que dentre seus legados está a separação de Estado e Igreja. É legado da reforma também o ensino sobre o sacerdócio de todos os santos, na busca por resgatar alguns princípios basilares da fé cristã, que se tinham perdido na promíscua relação do poder religioso com o poder político. E, co mo basicamente todo movimento humano de ruptura, a reforma tem muitas motivações e violência de natureza variada. No fim, sim, a reforma tem sido muito positiva social, política, economicamente e nos conferiu uma necessária liberdade de culto.  Mas, nós cristãos protestantes/evangélicos, teremos o que celebrar dia 31?  Restará em nossas memórias algum registro dos legados da reforma? Quando a igreja coloca de lado seu papel de comunidade de fé, que acolhe e cura pessoas e passa a disputar o poder temporal, misturar-se à autoridade institucional da política, e...