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[v.2020 - APENAS AMEM]

Ele estava muito cansado, física e emocionalmente.

Os últimos dias, especialmente desde a sua chegada aos arredores de Jerusalém, não estavam nada fáceis. 

Não bastasse a dor de ver o sofrimento do povo, a exploração da fé de todos ali, a inabilidade dos discípulos em lidar com a miséria e a violência, ainda lhe pesavam as próprias dores - da responsabilidade,  da missão, do que estava por vir, da solidão. E  como doía a solidão.

Então ele resolveu abraçá-la, já que nada poderia fazer contra ela. E procurou um jardim, que embora sombrio aquela noite, denso e absolutamente pesado - talvez por antever o que logo aconteceria ali, era um jardim.

Ele tremia e não era de frio. Talvez nem frio cobrisse aquelas regiões por aqueles dias.

Ele estava gelado e sozinho. Ainda que três dos que o acompanhavam fazia três anos, estivessem por ali,  mas distantes, essa era verdade, Ele estava sozinho.

As trevas dominaram violentamente aquela noite enquanto Ele gemia. Sozinho.

Os ventos uivaram raivosos e se jogaram com uma força incomum sobre as árvores, que se dobraram sobre Ele e Ele soluçava. Sozinho.

As estrelas e a lua,  talvez solidárias ou contaminadas pelo sentimento que cobriu a Terra por completo naqueles dias, numa irrevogável determinação de não se fazerem parte de qualquer daqueles acontecimentos, esconderam-se e Ele se contorcendo de dores agonizava. Sozinho.

Ele somatizava ali, a eternidade de toda a humanidade.

Era o adúltero, o estuprador, o corrupto e o corruptor, o vigário falso e o desonesto pastor, o prostituto,  o viciado, o assassino facínora, o marido violento, o explorador, o aliciador de mulheres e crianças e o pior de cada ser humano que se puder supor.

Ele ali também era a criança órfã,  o menor abandonado,  o menino de sonhos roubados - que monstro virou.

Era a mulher machucada, no corpo e na alma, anegra, a pobre e a doente - no corpo e na alma.

Ele era o jovem negro - que cai todo dia e que ninguém percebia e ainda hoje ninguém percebe.

Ele era o velho esquecido nos hospitais, nas ruas ou casas - sem filhos,  sem amigos, sem histórias que tenham valido a dignidade para os últimos dias.

Ele era o travesti, o gay, a menina macho - contados entre os invertidos.

Ele era o desempregado, desesperado.

Ele era o sertanejo de pele ressecada e de  esperança murcha - caída no chão árido, rachado.

Ele era o preso esquecido, condenado por seu crime, pagando o preço da vingança de um povo e do abandono da justiça, anos sob a cadeia de ferro fedida e o resto dos dias na masmorra do preconceito.

Ele era o indígena,  bicho estranho ao "homem desenvolvido",  preguiçoso, de hábitos vencidos, universo ultrapassado.

Ele era o carola religioso, o ateu intolerante, a bruxo incompreendida, a macumbeira desprezada e também, o crente ignorado e aquele arrogante.

Ele era o sem terra, o sem teto, o sem pátria, o sem juízo, o sem a força dos sonhos - zumbis na existência dos "normais".

Ele era todas e todos, mas estava sozinho.

E vieram as tropas. Um beijo. Traição. Cordas. Espadas. Gente precipitada querendo fazer justiça com a própria mão.  Sangue inocente no chão.

"Vou ferir o pastor e as ovelhas ficarão desorientadas".

E foi assim, que ele resolveu assumir os crimes de toda a humanidade para que no nosso tempo, hoje, tivéssemos a única coisa capaz de cobrir uma multidão de transgressões e  também de lançar fora os nossos mais profundos temores: o amor.

Ele se deixou brutalmente ferir para que olhássemos o outro, diferente, e nos tornássemos com ele, um.

Ele se dividiu com toda a humanidade, indistintamente, para que aprendêssemos o poder da partilha.

Ele se permitiu à solidão para que ninguém jamais deixasse de ser parte e vivesse à margem.

E depois daquela longa noite, ainda houve um longo dia de agonia e tudo se consumou. 

A Terra foi sacudida. O sol encerrou seu brilho. A lua silenciou sua potência.

Ele se expôs a todos os vexames possíveis e nos perdoou e quando tudo terminou nos disse:

❤️ Apenas amem!

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