Pular para o conteúdo principal

O toque que cura


A noite foi ruim. Muito quebrada e cheia de medos. Esses invisíveis tão reais que nos habitam e às vezes nos querem, se deixarmos, adoecer. Tentei meditação. Tentei criar mundos imaginários. Nada funcionou, senão o cansaço a me apagar, com pausas e reticências madrugais. 

Resolvi começar o dia com novos exercícios. Não abri notícias, de nenhuma natureza. O banho foi mais demorado, mais atencioso ao movimento das águas que me percorriam e o sentido de todas elas em mim - ao tempo em que tentava uma tal desconexão com o lá fora que, sabia, me gritava a um frenesi desnecessário e não cabido.

Frente ao espelho percebi que precisava era ficar frente a mim mesma, em carne, pele, sentimentos, pensamentos - meus porquês e (des) razões.

Falaram-me ao pé do ouvido, sutilmente, algumas questões. Foram tão amistosas que não pude silenciá-las.

Por que estamos em constante batalha mental? Não poderíamos simplesmente desenvolver uma parceria saudável com a nossa própria mente? Por que sabotamos a nossa saúde mental? E por que não vemos com afeição a autopercepção corporal?

A nossa pele nos recobre por inteiro. Toda ela é sensibilidade e voz, em muitos tons e timbres que, costumeiramente nos fazem muitos comunicados e, mesmo os seus silêncios estão sempre nos dizendo algo.

A consciência corporal, do que é e pode ser, não é uma construção exclusivamente tátil. Aliás, quando dizemos consciência, sua origem e vértebra - sustento, base e orientação - é a mente.

Foi então que lembrei do poder das mãos. A imposição das mãos. O toque.

Todas as religiões que conheço (e a que pratico) ou outras com as quais, de algum modo me desafio perceber e me relacionar, creditam às mãos um sobrenatural necessário.

O toque, cura ou violenta.

O vagar das mãos em nós pode ser afeto, carinho, descoberta, processo curativo. Ou a estupidez traumatizante do apropriar-se não autorizado, da invasão.

Na mente, também, é desse modo. Um tomar-se pelo ódio ou modos externos que nos penetram, e perpetram em nós desavenças de alma em mil formas e nos desconectam das essências positivas do nosso existir. Ou pode ser uma vibração que se coloca a busca da melodia pelo equilíbrio interior. E de dentro para fora, dá nova forma a nossa essência, fazendo-a bendita.

O divino pode ser essa dança, de alma e corpo conectados ao bem que os habita em desfavor dos males que os querem violentar.

Lembranças de novo me visitaram.

Enquanto dançávamos no último réveillon, foi-me dito: “Ádila, tira a sandália e sente a terra”. Era madrugada e já poucos estavam no local. Atendi ao conselho sussurrado.

Não sei se o álcool em dose quase perto do meu limite (penso que não), se o espírito celebrante que reinava no meu ambiente interior, mas foi uma experiência transcendental. Muitas emoções, quase em tom automático, me invadiram. Eu senti a terra. Eu me senti pedaço da terra, daquele chão sob os meus pés, eu me senti continuidade e uma energia nova me subia pelos pés.

É, ok, eu sei que é meio viajante. Mas foi assim.

Então, hoje pela manhã lembrei disso e lembrei também de uma mulher enferma que estava à margem, isolada, sangrando sua vida, desmaiando-se por onde andava. E andava só e sob desprezo. Mas ela soube, no seu interior, fruto de uma consciência sobrenatural, que o toque lhe traria o divino e a cura. E enfrentou todas as oposições da própria alma e dos mundos (material e espiritual) porque precisava apenas tocá-lo (o seu divino) e seria curada.

E assim foi.

E se colocarmos a energia das nossas mãos sobre a nossa pele? Não apenas num passeio de eventual e mera exploração tátil ou corporal, mas na transmissão desse poder curador do toque?

Acendi o incenso.
Coloquei uma canção suave.
Sentei-me confortavelmente.
Aquietei a mente.
Pus-me a um passeio sobre a minha própria pele na expectativa de senti-la com o meu todo indissociável e ouvi-la em seu timbres variados.

Senti.
Ouvi.

E o poder das minhas mãos dançou sob a magia dos poderes da minha outra pele, completa a me recobrir o corpo.

E a mente me disse: é isso.

As energias que me habitam podem curar pelo toque - ou violentar, sob indisciplina mental.

Quero ser cura. Apenas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Democracia e representatividade: por que a anistia aos partidos políticos é um retrocesso

Tramita a passos largos na Câmara dos Deputados, e só não foi provado hoje (2/maio) porque teve pedido de vistas, a PEC que prevê anistia aos partidos políticos por propaganda abusiva e irregularidades na distribuição do fundo eleitoral para mulheres e negros. E na ânsia pelo perdão do não cumprimento da lei, abraçam-se direita e esquerda, conservadores e progressistas. No Brasil, ainda que mulheres sejam mais que 52% da população, a sub-representação feminina na política institucional é a regra. São apenas 77 deputadas entre os 513 parlamentares (cerca de 15%). E no Senado, as mulheres ocupam apenas 13 das 81 cadeiras, correspondendo a 16% de representação. Levantamentos realizados pela Gênero e Número dão conta que apenas 12,6% das cadeiras nos executivos estaduais são ocupadas por mulheres. E nas assembleias legislativas e distrital esse percentual é de 16,4%. Quando avançamos para o recorte de raça, embora tenhamos percentual de eleitos um pouco mais elevado no nível federal, a ime...

Narrativas. Vida. Caos. Desesperança.

  Quando eu era pastora repetia com muita frequência, aos membros da igreja, sobre a necessidade de submeterem o que ouviam de mim ao crivo do Evangelho, aprendi isso com o bispo Douglas e com o Paulo, o apóstolo rabugento (e por vezes preconceituoso), mas também zeloso com a missão cristã assumida. Outra coisa que eu repetia era que as pessoas só conseguiriam se desenvolver se exercitassem a capacidade de pensar. Nunca acreditei num Deus que aprecia obediência cega, seres incapazes de fazer perguntas. E cada vez mais falo a Deus que se ele não conseguir se relacionar com as minhas dúvidas, meus questionamentos, as tensões do meus dilemas e mesmo cada um dos incontáveis momentos em que duvido até dele, então ele não é Deus. Será apenas um pequeno fantasma das minhas invencionices mentais, portanto, irreal. E por que isso aqui da gaveta das minhas convicções e incertezas? Assim? A nossa História é basicamente um amontoado de narrativas. Ora elas nos embalam na noite escura e fria. O...

Reforma?

Daqui 11 dias celebraremos 505 anos da reforma protestante.  Naquele 31 de outubro de 1517 dava-se início ao movimento reformista, que dentre seus legados está a separação de Estado e Igreja. É legado da reforma também o ensino sobre o sacerdócio de todos os santos, na busca por resgatar alguns princípios basilares da fé cristã, que se tinham perdido na promíscua relação do poder religioso com o poder político. E, co mo basicamente todo movimento humano de ruptura, a reforma tem muitas motivações e violência de natureza variada. No fim, sim, a reforma tem sido muito positiva social, política, economicamente e nos conferiu uma necessária liberdade de culto.  Mas, nós cristãos protestantes/evangélicos, teremos o que celebrar dia 31?  Restará em nossas memórias algum registro dos legados da reforma? Quando a igreja coloca de lado seu papel de comunidade de fé, que acolhe e cura pessoas e passa a disputar o poder temporal, misturar-se à autoridade institucional da política, e...