John Donne, já há alguns séculos bradava que "nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo." Mas nós, ao contrário da óbvia primeira interpretação possível, nos conduzimos à insistente apropriação do comum como se a um pertencesse. Nosso olhar é detido em nós, em atroz perturbação individual que perfura qualquer outro olhar mais cordial ao outro - parte de nós em significado existencial mais elementar.
Compartilhar, o verbo (ação) que deveria ser o eterno presente da nossa existência, tal qual respirar, dissolve-se invisível, sem qualquer questionamento, como quando nos falta ar ou o que se tem é poluído, pesado.
Esquecemos com muita facilita que somos comum desde antes de existirmos. Somos a soma de dois, conjunto de vários e, conforme se fazem os dias em nosso existir, nos tornamos milhares. Um pouco de cada um antes de nós. Um pouco dos convivas. O profundo mistério da coexistência.
E por que insistimos em nos fazermos proprietários dos produtos da inteligência comum, do que se constrói em ciclos interdependentes?
E por que o fruto de processos coletivos é despudoradamente feito posse individual, quando sua primeira prospecção já o fez coletivo?
Que raiz adoradora do indivíduo é essa que nos habita profundo e nos prende a olhar apenas os próprios pés e a reconhecer na estrada apenas os próprios passos?
Vocalizar ações não significa tomar para si seus significados, mas amplificar seus significantes (e neles outros significados), de modo a que a multiplicidade dispersa conjugue potência comum e destrave processos evolutivos, crie novas possibilidades, ilumine mais longe e claro o caminho às ações, não o vocalizador.
Despersonalizar empodera e engrandece porque se multiplica no comum e sai da potência de um. Eis o mistério desprezado, o mesmo ao qual deveríamos devotar nossa inteligência para compreender e esforços para desenvolver.
Dura um ano, às vezes décadas, muito raramente, porém, o comum usurpado a um se solidifica a séculos, porque compartilhar autoria e realização dar concretude aos verbos, sentido e firmeza aos atos.
Que a percepção da existência nos convide a este mergulho, nos veios da existência compartilhada em vida que se reconhece no outro, parte do meu ser, pessoa coletiva.
A vida se dá quando compartilhada.
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