Era quarta-feira, como outras tantas na padaria perto de casa.
Um pigado, por favor. Com mais café e leite, bem quente. Mais quatro biscoitos de queijo. Meu pedido de todo dia.
Enquanto espero...uma mensagem salta no Messenger.
"Ádila, sabe de alguma oportunidade de emprego?"
Não é a primeira vez a mesma questão me bate à porta.
Minha caneta cor de rosa também salta para escorrer sua tinta no primeiro verso de papel que encontro na mochila.
Impossível não me ver voltando ao final da década 1990, quando eu tinha a mesma idade do meu amigo da conversa. Muito embora, é preciso afirmar, mesmo em condições severas, as dele são bem mais arrojadas.
1997. Eu morava em Ceilândia. QNM 03. Quem conhece sabe que é barra pesada. Hoje ainda menos que naquela década. Mais de uma vez, ao retornar da escola (CEd 07) me deparava com a rua (conjunto G) fechada pela PATAMO. Ninguém entrava ou saía até que mais uma operação atrás de merla, a droga da quebrada, fosse finalizada. Uma vez teve um assassinato na porta da minha casa. E não foram poucas as vezes que fui "escoltada" de casa até a escola por um jovem viciado que ficava perambulando na quadra. Ora doidão. Ora fazendo pequenas entregas aos carrões que por lá apareceriam. Ele me pedia uma folha do caderno todo dia e todo dia ia falando a mesma história de que era importante estudar.
Mas aquela minha realidade, que foi breve, não se chega aos pés do que o meu amiguinho vive, desde sempre.
A vida do jovem da periferia é muito dramática. Heroicamente ele consegue permanecer na escola para se desafiar a estudar, quando a sua cabeça está noutro mundo, da comida que falta em casa, do aluguel, da mãe trabalhando pesado e você, que deveria ajudar em casa está ali, para quê mesmo? Sim, esse grilo fica zunindo na cabeça.
Aí você vai procurar um curso, porque não pode se dar ao luxo de terminar o ensino médio e não se comprometer financeiramente com a família. Você precisa se preparar para entrar no mercado de trabalho. Como odeio essa expressão! E o que é oferecido?
Auxiliar administrativo. Recepcionista. Atendente.
Na boa? Que diabos de oportunidade é essa? Por que não estamos ensinando tecnologia e comunicação para os nossos jovens pobres?
A primeira resposta: porque não temos compromisso com a ruptura dos sistemas de empobrecimento cíclicos que regem nosso país.
Depois. Porque é o tipo de "curso" que não dá para ir à uma aulinha mal engendrada de duas horas, duas vezes por semana e pronto. Você tem que imergir, treinar, fuçar, desbravar mundos sozinho e fazer conexões, para além daquelas aulinhas . E aí, você não foi ensinado a pensar, sua curiosidade foi podada a vida toda, você não desenvolveu hábito da leitura e, pra melhorar ainda mais, você não tem instrumentos básicos: um computador e internet. Como fazer?
O caminho mais fácil é sempre a melhor escolha, não é verdade? Cada um no seu quadrado e a repetição do discurso vazio e desumano de que, "quem quer pode". E isso define nosso mundo mesquinho.
Já desisti de cursos porque precisava ajudar em casa com dinheiro, portanto, trabalhar e não estudar, era prioridade. Desisti de outros por falta de dinheiro para o ônibus. Desisti de outros porque só dariam retorno muitos anos depois e eu precisava de algo que me inserisse já, imediatamente, no mercado de trabalho e assim, poderia ajudar a amenizar os aperreios de casa.
E assim, se perdem bons cérebros. E assim, escravizamos jovens. E assim, perpetuamos ciclos segregadores.
Ah, esses jovens precisam pensar no futuro.
Confesso. Minha real vontade é escrever um palavrão que deixasse muita gente roxa.
O futuro desses jovens é o dia seguinte, quando muito. Muito diferente da grande maioria dos bem nutridos que repetem esse discurso e outros igualmente rasos.
De tantas dores que carrego quanto aos adolescentes e jovens em situação como a do meu amigo, é que lhes foi tirado o direito de sonhar.
Das coisas mais elementares e poderosas que podemos carregar conosco é o sonho e a esperança. E mesmo isso não lhes é dado o direito de cultivar.
Minha tinta cor de rosa se desmancha nas lágrimas inevitáveis pelo que temos feito às nossas crianças e jovens, roubando-lhes o direito de sonhar e encravando-lhes a obrigação de "dar certo" e superar todo monturo de desumanidade com que lhes sufocamos.
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