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Quanto mais alto estou mais desejo o chão

É verdade, odeio muito, mais bem muito mesmo, voar.

Sim, é porque me vejo completamente entregue ao destino, na mais clara consciência da incapacidade de controle sobre qualquer coisa, sobre o vôo.

Não, não acho que no chão esse controle exista. Lá, porém, a gente tem mais chances de fingi-lo e é assim que fazemos o tempo todo.

Agora, não dá pra negar, há coisas que só podem ser apreciadas assim, daqui do alto, como as nuvens, a imensidão do mundo que cabe nos nossos olhos e daquele que enche cada centímetro do nosso coração ou, daquele que nos faz sentirmo-nos ilimitados na nossa mente.

Ah, sim, Brasília, linda, fica incomparável quando olhada do alto. A noite, então!

Que coisa linda reconhecê-la!

Ali, ali...a Ponte Honestino Guimarães!

Lá? Hum, show, a Ponte JK!

Nossa, que lindas essas ruas!
Quanta luz!

Uau! A Península dos Ministros, o Parque do Anfiteatro Natural...a orla tornando-se livre.

Orla Livre!

A cidade é de uma beleza fora do comum. Seus traços, sua marca de autonomia.

É do alto também que reconhecemos outros traços nela. Como os da sua subordinação aos interesses da ganância, sua partilha desenfreada.

Não. Não aquela partilha que congrega valores democráticos, fruto do agir republicano sob a força do espirito coletivo. É a partilha do fatiamento escudada por demandas bem particulares, pela apropriação do público para fazê-lo particular.

Há ainda o traço a complacência com a exclusão, disfarçadas aqui no alto, pelas luzes artificiais que nos encantam, mas bem visíveis quando o sol rompe as nuvens do nosso deslumbramento e nos faz enxergar lá embaixo, a segregação de brasileiros e brasileiros que o sonho de cidade não abraça,  reconhecidos no chão, na lama, no pó.

Aqui no alto tenho pavor controlado, repetindo o mantra que só acontece o que tem que acontecer.

Aqui no alto, também, e sempre depois de me convencer do controle sobre o meu pavor, tenho sonhos de que a vista sob um único olhar e, paradoxalmente, exposta também em diversa existência, a injusta, inclusive, precisa ser vista mais detidamente em cada um dos seus traços e outros olhares.

Há outros traços.

Os traços que apresentam a cidade musa modernista e, aqueles de expropriação, apropriação indébita, segregação e silenciamento dos sonhos que a inspiraram.

É daqui, do alto da minha insignificância e sabendo-me parte de um sistema social de complexidade quase indecifrável que me imponho a necessidade de perscrutar a minha alma para me esclarecer no que, como, quando e o quanto tenho contribuído para que os traços de Brasília se desviem do sonho e da esperança para os da doença da segregação que a acomete.

Também, exijo-me pensar como posso ser mais responsável com a cidade que me acolheu e me fez sua. O que, como, quando e o quanto devo dar de mim para que outros desenhos, a partir daqueles originais que fizeram pulsar nosso coração, podem correr pelas curvas e retas da cidade para fazê-la reconhecida por todos os brasileiros como sua, portanto, fonte de inspiração para em suas outras Brasilias, dos quatro cantos do Brasil, promoverem justiça, solidariedade, cultura de paz, sustentabilidade, democracia intensa, regência da coisa pública sob o bastão do espírito republicano.

Assim, quanto mais alto estou, mais ardentemente desejo os pés no chão do meu destino para acreditar, dessa vez não como tentativa de engano aos meus medos, que ali, no metro quadrado que meus pés e corpo ocupam, devo agir guiada por sonhos da cidade de todos, esperança dos bons frutos do partilhar republicano e compromisso de nada se faz em vôo solo na sociedade.

Do alto da minha ansiedade por estar no solo, o que desejo é que os nossos sonhos por uma cidade de todos, justa e sustentável, tenham força e vigor para se sustentarem,  mas nuvens que inspiram e se façam, no chão, com suor, trabalho e alegria do fazer comum.

E que seja assim, para todo ser, sujeito e cidadão: quanto mais alto estivermos, mais desejarmos o chão.
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escrito em vôo Brasília/Salvador, dia 30 de Julho.

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