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O ponto da virada?

O ponto da virada. Este é o nome de um livro de Malcolm Gladwell que me foi emprestado por uma amiga (e até hoje não devolvi porque acabou virando um livro de cabeceira), ao qual recorro frequentemente para lembrar de não perder a perspectiva da esperança.

Então, de repente me vejo tentando olhar o Brasil para além de um pouco mais do pouco que o conheço, e perguntando se não seria este o momento do nosso ponto de virada.

De um lado sou completamente incrédula quanto a isso, uma vez que considero a virada possível, somente a partir de um escopo de consciência de responsabilidade, o que se adquire com o manto da educação para a cidadania, e nisso repousa uma das nossas grandes deficiências - quando nem mesmo aqueles que tem acesso a boas escolas (para terem condições de boas escolhas) tem assim assegurada uma formação cidadã.

De outro lado porém, sei que há muitos processos no contexto da individualidade que recebem um tal empurrão para a transformação, justamente no estado do caos, do despreparo e da inconsistência de ser e apenas sob a pressão de "alguma coisa precisa ser feita, e agora" e é com um safanão da vida que acabamos por descobrir caminhos "nunca dantes imaginados" para uma nova construção pessoal, grande parte das vezes, e de modo impressionante.

Tendo isso em mente, portanto, me vejo querendo prospectar que a nossa atual turbulência, estando num contexto extraordinário e avassalador de disseminação de informações (distorcidas, é bem verdade, quase sempre), poderá nos empurrar para questionamentos tantos que se tornem capazes de provocar uma ruptura efetiva com o sistema ora encrustado no modo como nos organizamos socialmente e deliberamos com os nossos entes políticos representativos.

Não sem dores, é óbvio. 

Na verdade, as dores já estão em curso - no sangrar das profundas decepções que jorram do nosso interior e respingam no solo através da nossa pele - desde quando acreditamos que uma esperança teria vencido o medo e estabeleceria uma nova forma de organização do Estado, centrado no emponderamento dos seus cidadãos. Sem esquecer, é claro, que isso apenas reproduziu o que sempre foi. E como doeu a traição de nos vermos, apenas outra vez, bucha de canhão para um projeto de poder em desprezo ao projeto de Estado gerador de cidadãos autônomos e ativos com o qual o sonhávamos.

Os anos rapidamente passaram e, por ética temos que reconhecer os avanços feitos a despeitos do compromisso maior com o poder e não com aquele que o faz emanar - o povo - a fragilidade daquele projeto rapidamente se arvorou de todos nós, e assim temos:
  • uma estrutura de educação acessível para a grande parte da grande gente pobre, mas que não a educa, não a emancipa;
  • um sistema de desenvolvimento baseado no consumo e consequente (inconsequente) degradação ambiental;
  • a chancela, de contínuo, à reprodução dos sistemas de concentração de riqueza e renda à tutela de uma parcela cada vez mais diminuta da população;
  • o recrudescimento dos sistemas de segregação social via sub-empregos, aliciamento infantil para o trabalho e abuso sexual, delinquência juvenil, consolidação dos ciclos de apartheid social e de raça;
  • expropriação das riquezas naturais em nome de um desenvolvimentismo que não considera a nossa real e potente capacidade de reger um novo modelo de economia mundial a partir de novas matrizes de produção.
A lista facilmente poderia ganhar páginas.

Claro que o conhecimento não pode se comparar ao acesso à informação. É verdade, entretanto, que a informação pode se transformar em conhecimento e este pode abrir as portas das prisões. Todas elas.

Conhecer liberta.

O conhecimento pode ser o ponto da virada e é nisso que esperanço nesse momento de incontida perturbação e sensação de nada sob os pés.

Esperanço no conhecimento, ainda que aquele de apenas absoluta consciência de desfavor, caos, lama social, estado de coma, convicção de "alguma coisa precisa ser feita" e não por mão de outrem, mas de todos nós pensando no coletivo.

Se a sensação de abandono à calhordice e o incrédulo segurar do grito "pior que tá não fica" não nos matar, então quero acreditar que estes irão girar em nós uma consciência incontrolável de busca por sermos cidadãos e isso nos fará enxergar, nessa lama que nos envergonha, a força para recomeçar.

E recomeçaremos. Dessa vez não à procura de salvadores da pátria, mas de cidadãos servidores, com senso de responsabilidade compartilhada, para nos fazermos, de mãos dadas, a nação que merecemos ser.

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