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Nenhum dos gritos é sem legitimidade

"Nenhuma ameaça ou nenhum suplício obterão que eu cometa injustiça, que eu diga mentiras ou que eu deixe de pesquisar a verdade, dizia Sócrates.
É preciso nunca matar, jamais ferir.
- Mesmo se tu és ferido?
- Mesmo se me batem.
- O que acabas de dizer, ó Sócrates, é indigno não somente de um ateniense, mas de um homem, disse Aristófanes, o poeta cômico; e brutalmente bateu em Sócrates com o pé.
Sócrates respondeu com um sorriso.
Antístenes pulou ao pescoço de Aristófanes.
Sócrates o tirou das mãos de Antístenes.
Aristófanes se afasta envergonhado e rancoroso e começa a escrever a comédia Às Nuvens, vingando-se do mal que fez, injustamente, a Sócrates e do bem que o sábio espalhou naquele exemplo de serenidade para as ofensas e bondade para os perversos." (Recortes de APOLOGIA DE SÓCRATES)

Se servir para refletirmos sobre as posições que queremos cobrar uns dos outros frente às questões políticas atuais ou, o ponto a que elas chegaram, então vamos lá.


Ainda não consegui ouvir argumentos que me demovam do posicionamento de que estamos no mato sem cachorro. E mais, a noite está chegando e a tempestade se aproximando. Só que subir na árvore morta, seca e podre não significa nada. Derrubá-la sem arrancar sua raiz podre também não nos livrará do "peso" de aguardar o sol nascer de novo e de esperar a tempestade passar. Estamos na selva e há perigo de morte, mas precisamos nos manter vivos - e lúcidos - para o dia depois de amanhã.

Por isso eu prefiro acreditar que deve haver um caminho que não seja nenhuma coisa, nem outra do que gritam as ruas e as mídias. 


Para irmos além dos óbvios, como diria um colega de trabalho, não esqueçamos que a democracia foi sequestrada ainda no parto, tão logo o cordão umbilical era cortado e mesmo antes do primeiro banho que lhe tirasse as manchas de sangue do sofrido nascimento. E quando os trabalhadores chegaram ao poder, a incapacidade de firmeza quanto aos princípios da democracia e do serviço os fizeram agir pior que o mal que sempre denunciaram.

Não esqueçamos que no começo, todos nós, vimos o que estava acontecendo, mas escolhemos pensar e agir como "a política é assim mesmo e os fins devem justificar os meios", até que chegou a conta e ela é de todos, mesmo de quem não a cacifou.

Assim, a verdade é que há justificativas para QUASE todos os argumentos em curso - acerca do nosso trágico momento político. Isso se a nossa inteligência não se dobrar ao nosso autoritarismo. Mas é preciso ter raça para admiti-las. 

Pessoalmente, eu até gostaria de me juntar aos que gritam "não vai ter golpe", porque todo golpe é um ato de violência. Mas, já teve golpe quando o Estado - só para não perder mais uma página na história do poder - foi aparelhado para não fazer aquilo a que se propunha o Governo que o regia.

Mas JÁ TEVE GOLPE.
  • Fomos golpeados, todos os brasileiros, quando alguns por ignorância e outros por irresponsabilidade, terceirizamos nossa cidadania ao sistema;
  • Fomos golpeados quando continuamos a aceitar miçangas e espelhinhos para termos coisas em vez de cidadania;
  • Fomos golpeados quando permitimos que os bancos se apropriassem da res pública e a fizessem alavanca para ganhos como jamais poderiam ter obtido se o interesse fosse público;
  • Fomos golpeados quando aceitamos passivamente o sucateamento das universidades públicas e centros de pesquisas científicas e não exigimos para os nossos filhos educação básica de qualidade e pública; 
  • Fomos golpeados quando fingirmos não ver o aparelhamento estatal e dos movimentos da sociedade civil, porque a bem da verdade, tínhamos interesses bem individuais envolvidos e optamos pelo "melhor deixá quieto"; 
  • Fomos golpeados quando escolhemos os nossos representantes do Legislativo e do Executivo que aí sangra, com base numa campanha fake, deseducadora, fraudulenta e não tivemos sequer o cuidado de exigir um programa de governo ao qual recorrer agora, exigindo compromisso com ele.
Também poderia me juntar aos de verde e amarelo, afinal - pra começar, essas cores tem um poder tão profundo no nosso imaginário, que nos emociona - não fosse saber quais sereias cantam o canto que faz bailar a multidão - que nem sabe das sereias (ou finge não saber) - e vai, vai, vai, embevecida a multidão, por suas dores atrás do trio, até mergulhar no mar profundo.
  • Se sei o que há por trás cores que balançam a bandeira e da incongruência deles com os caminhos que desejo e pelos quais quero sempre lutar no meu país, não posso responder a esse chamado em sã consciência. E acho que tenho um pouco de lucidez. Às vezes.
Nenhum dos gritos é sem legitimidade - do ponto de vista do coro na multidão que os entoa. Mas, são ambos, completamente imorais do ponto de vista de quem os incita e nisso, perdem a legitimidade, pelo menos aqui, dentro das minhas motivações e segundo o que acredito.

Por isso, volto os meus olhos para o Manifesto da REDE, movimento político do qual faço parte e que precisa se manter coerente e alicerçado num dos seus grandes princípios: não ser dono da verdade. Na esperança de que muito diálogo deve preceder qualquer ação frente ao estado de vergonha e humilhação em que nos encontramos, ao preço de não o fazendo, podermos mais rapidamente errar que o erro que denunciamos. E aí, destaco um trecho do Manifesto REDE: "Propomos aos cidadãos e cidadãs de todos os segmentos e de todas as idades que se unam para valorizar nosso sistema político, recriando-o e sintonizando-o com um projeto de desenvolvimento no qual ecologia, economia, justiça social, ética, gestão do Estado e prática política sejam compatíveis. Almejamos o fortalecimento da sociedade civil e da cidadania ativa, verdadeira fonte de governabilidade e de direcionamento da ação do Estado.

Não faltará quem diga que tudo é apenas sonho. Para nós, sonho é apenas aquilo que ainda não está realizado, é o teto sob o qual se reunirão aqueles que querem fazer valer a sua vida, que acreditam na força coletiva, que não aceitam interdições à sua liberdade e ao seu direito de aspirar a um futuro melhor. Temos o desafio de instigar novos processos, unir as forças, a indignação e a criatividade dispersas. Apostamos na  lógica colaborativa e fraterna. Não podemos mais tolerar a verticalização das decisões e ganhos, enquanto as perdas são cotidianamente horizontalizadas."

Acredito MESMO que não haja "outra maneira de ir adiante quando tudo parece difícil e até mesmo intransponível!" (Manifesto REDE).

A mudança que precisamos não virá de um virar de páginas. Ela é processual, longa e exige esforços profundos. Uma contracultura política.

Alguns dirão que isso é inocência, utopia. Tudo bem. Isso não me incomoda nem um pouco. Até porque acredito que a utopia tem uma missão nobre, muito bem explicitada por Eduardo Galeano: "A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar" .

E o que tudo isso tem a ver com os recortes no começo desse texto?

Posicionamentos de contracultura nunca serão compreendidos quando postos, especialmente em momentos em que queremos servir a cabeça de alguém como troféu de uma batalha feita contra a consequência e não contra a causa do que nos tornamos politicamente.

PS.: o governo em curso é canalha e precisa pagar caro por tudo o que provocou. Eliminá-lo, porém, sem cortar os tentáculos que sempre o alimentaram e ao seu anterior, que na verdade alimentam o sistema, não nos tirará das trevas, tão pouco nos dará sobrevida na selva. É a partir daí que precisamos pensar e agir.

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