Pular para o conteúdo principal

A hora de revirar o lixo

Nem ao mais asséptico dos seres humanos (já que assepsia total nos é impossível possuir) é dado o privilégio de não ter que mais cedo ou mais tarde colocar a mão na lata do lixo para revirá-lo. E se precisássemos de pelo menos um motivo para aprovar essa necessidade, daria a razão de produzirmos lixo desde antes de nascermos e portanto, nem que seja apenas para nos certificarmos de que o descarte de algo foi realmente feito, não escaparemos dessa cina humana: mexer no lixo.

O complicado disso tudo é que mexer no nosso lixo parece ser ainda mais complexo que no de outra pessoa. Mas, uma coisa é certa, na medida em que tomamos consciência da necessidade de revirarmos o nosso lixo, quanto mais adiamos a tarefa, mas complicada e perigosa ela poderá se tornar.

O odor do apodrecimento de histórias e relações nos fazem embrulhar o estômago.

Todos aqueles bichinhos gerados a partir do lixo, nos enojam e dão medo. E sim, de início, talvez, saiamos ilesos da tarefa. Mas, talvez saiamos com um corte em objeto não identificado ou do qual não nos lembremos mais. Talvez um mal cheiro que nos requeira um pouco mais de água e sabão no processo de limpeza das mãos, quem sabe do corpo todo. Talvez um tempo maior de reclusão. Talvez expor-se para receber colaboração.

A despeito de tudo isso e outros tantos "talvez", é preciso que encaremos as nossas latas de lixo, abertas ou lacradas, pois não é possível o seu descarte responsável sem as revirarmos. É somente através dessa árdua, e por vezes dolorida tarefa, que poderemos evitar jogar fora o que pode ser reciclado e reaproveitado, ganhando novo e útil significado. É através dela também, que podemos ter a possibilidade de encontrar em nós alguma matéria orgânica que eventualmente ali exista e usá-la como geradora de outros processos de vida e, no mínimo, se nada for passível de aproveitamento, aprenderemos a lidar adequadamente com os demais lixos que produziremos até a nossa partida dessa existência para que o acúmulo de lixo não nos cause doenças e não nos tire a vida, orgânica, que nos faz humanos. Pois, se assim não for, é quase certo que nos tornaremos um lixo de gente - quando muito, descartável - imprestável, detestável, causadora de males.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Democracia e representatividade: por que a anistia aos partidos políticos é um retrocesso

Tramita a passos largos na Câmara dos Deputados, e só não foi provado hoje (2/maio) porque teve pedido de vistas, a PEC que prevê anistia aos partidos políticos por propaganda abusiva e irregularidades na distribuição do fundo eleitoral para mulheres e negros. E na ânsia pelo perdão do não cumprimento da lei, abraçam-se direita e esquerda, conservadores e progressistas. No Brasil, ainda que mulheres sejam mais que 52% da população, a sub-representação feminina na política institucional é a regra. São apenas 77 deputadas entre os 513 parlamentares (cerca de 15%). E no Senado, as mulheres ocupam apenas 13 das 81 cadeiras, correspondendo a 16% de representação. Levantamentos realizados pela Gênero e Número dão conta que apenas 12,6% das cadeiras nos executivos estaduais são ocupadas por mulheres. E nas assembleias legislativas e distrital esse percentual é de 16,4%. Quando avançamos para o recorte de raça, embora tenhamos percentual de eleitos um pouco mais elevado no nível federal, a ime...

Narrativas. Vida. Caos. Desesperança.

  Quando eu era pastora repetia com muita frequência, aos membros da igreja, sobre a necessidade de submeterem o que ouviam de mim ao crivo do Evangelho, aprendi isso com o bispo Douglas e com o Paulo, o apóstolo rabugento (e por vezes preconceituoso), mas também zeloso com a missão cristã assumida. Outra coisa que eu repetia era que as pessoas só conseguiriam se desenvolver se exercitassem a capacidade de pensar. Nunca acreditei num Deus que aprecia obediência cega, seres incapazes de fazer perguntas. E cada vez mais falo a Deus que se ele não conseguir se relacionar com as minhas dúvidas, meus questionamentos, as tensões do meus dilemas e mesmo cada um dos incontáveis momentos em que duvido até dele, então ele não é Deus. Será apenas um pequeno fantasma das minhas invencionices mentais, portanto, irreal. E por que isso aqui da gaveta das minhas convicções e incertezas? Assim? A nossa História é basicamente um amontoado de narrativas. Ora elas nos embalam na noite escura e fria. O...

Reforma?

Daqui 11 dias celebraremos 505 anos da reforma protestante.  Naquele 31 de outubro de 1517 dava-se início ao movimento reformista, que dentre seus legados está a separação de Estado e Igreja. É legado da reforma também o ensino sobre o sacerdócio de todos os santos, na busca por resgatar alguns princípios basilares da fé cristã, que se tinham perdido na promíscua relação do poder religioso com o poder político. E, co mo basicamente todo movimento humano de ruptura, a reforma tem muitas motivações e violência de natureza variada. No fim, sim, a reforma tem sido muito positiva social, política, economicamente e nos conferiu uma necessária liberdade de culto.  Mas, nós cristãos protestantes/evangélicos, teremos o que celebrar dia 31?  Restará em nossas memórias algum registro dos legados da reforma? Quando a igreja coloca de lado seu papel de comunidade de fé, que acolhe e cura pessoas e passa a disputar o poder temporal, misturar-se à autoridade institucional da política, e...