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Eu, você e os carimbos!

A história dos carimbos remonta desde muitos séculos, ao longo dos quais, várias foram as formas assumidas por esses instrumentos. De um modo geral, porém, os carimbos sempre tiveram o mesmo conjunto de funções, girando em torno de atestar algo como verdadeiro, configurar garantias a contratos e coisas afins.

Os carimbos, necessariamente fazem parte da nossa vida, e não se trata daquele momento em que vamos ao cartório providenciar a autenticação de um documento, reconhecimento de firma ou em um consultório médico pegar um atestado. Eles nos acompanham de um modo bem mais significativo que estes e com marcas indeléveis, de fato, embora passíveis de variação de significado.

Em 2004, acho que lá pelo mês de março ou abril, participei de uma das reuniões regulares com líderes da comunidade cristã da qual eu era membro. A lição daquela noite estava em torno de um ensinamento que costumo resumir assim, como foi feito ali: um desenho circular com um ponto no centro. O pastor que conduzia a reunião dizia algo mais ou menos em torno do seguinte:

Desde antes de nascermos, marcas são geradas em nós e isso se segue na nossa infância e por toda a nossa trajetória. Muitas são negativas. A questão é que não dá para desprezar as forças que regem o nosso universo, numa espécie de disputa pelo nosso destino e a única maneira de estarmos seguros e não sermos completamente vulneráveis à manipulação que as forças do mal farão sobre essas marcas, a fim de nos destruir, é que nos desafiemos a buscar o centro da vontade de Deus e permanecer lá (naquele desenho de que falei antes, simbolizada pelo ponto no centro do círculo, sendo este o nosso contexto de vida).

Nessa guerra, muitas coisas pelas quais passamos e que julgamos tê-las superado, em algum momento podem ser usadas com vistas a nos desestabilizar. Palavras, acontecimentos da infância, experiências de amargura, decepções, desgostos, abandonos, perdas. Enfim, toda espécie de sofrimento da alma, ganha aqui um poder ainda mais significativo, de âncora, no sentido de nos puxar para as margens do círculo (lugar da nossa maior vulnerabilidade) e nos fazerem cair, por completo, no domínio do "inimigo das nossas almas".

Você tem todo o direito a questionamentos dessa descrição alegórica, como eu também me permito fazer, passados dez anos e com muita água debaixo da ponte. Vale registrar que ao que foi dito pelo pastor, acrescento outros pontos e nem sei distinguir uma e outra coisa, a essa altura. Não posso, porém, negar que as marcas - ao que chamarei aqui carimbos, da nossa história, não podem ser desprezadas. Na grande maioria das vezes, elas (ou eles) nos definem, configuram (ou desconfiguram) e nos aprisionam (ou nos libertam).

O importante disso tudo é aprendermos a lidar com os carimbos que a vida nos dá ao longo dos nossos anos. Do contrário, é quase certo que estaremos condenados a uma existência desbotada em uma gaveta qualquer, sem uso e sem serventia alguma, o que acontece muitas vezes, até mesmo a documentos que poderiam mudar destinos de gerações inteiras, mas que se perderam no processo burocrático no qual foram inseridos e em que jogos e intrigas, ganham mais significado que o conteúdo explicito ou não nas linhas do documento, a vida.

O que vai prevalecer, então? 
O que vai nos definir? 
O que vai ditar os nossos caminhos? 
O que vai pautar as nossas escolhas?

A nossa autenticidade estará balizada em quê?

Nos carimbos que nos aposentam e nos dão sinalização de obsoletos ou aqueles que nos desafiam a quebrar paradigmas? 

Nas normas perversas de direitos às avessas que sintetizam missão em estratos de relações mofas, envelhecidas sem nunca terem amadurecido ou a autenticação de que fomos postos no mundo com uma missão muito clara: aprender a ser gente e como gente investir a vida para manifestar na nossa geração, marcas de superação daquelas anteriores condenatórias, por outras de vida honrada possível, valores de amor e respeito, sementes de esperança no mais profundo caos, consistência de que a marca que realmente conta em nós, dando novo significado às negativas que temos, chama-se amor e sem esta, de fato, o nosso fim é sermos julgados objeto de descarte ao esquecimento e pior, à uma vida de etapas queimadas em vão e por fim, lançada no lixo da condenação da alma, sem lembrança, sem registro.

A mesa está organizada (ou não). De qualquer modo está posta. Sobre ela, tinta e papéis. Destes, há muitos com alguns traços e rascunhos, outros com muita coisa escrita e muitos já completamente tomados por "definições". Há ainda carimbos de sentenças, de oportunidades, de aprisionamentos, alvarás de soltura e tantos outros. Muito provavelmente eu e você já tenhamos recebido as marcas destes e outros tantos carimbos e talvez guardemos a tristeza de perceber que prevalecem em nós, tintas de experiências que nos fazem cambalear, tolos na roda do destino. 

Finalizo, então, lembrando que há um carimbo de poder superior a todo e qualquer outro carimbo já inventado (ou que a desgraça da nossa desumanidade e desobediência espiritual crie). Ele impõe a mais importante verdade do universo - "está consumado", e por meio dele nos é dada a oportunidade da desobediência às autenticações dos carimbos que nos condenam, para fazer prevalecer a força do que nos autoriza a acreditar no novo, na esperança, na superação do negativo, na transformação da maldição em bênção, assumindo o significado de uma identidade regenerada para manifestar os valores do amor.

Eu, você e os carimbos, que marcas vão prevalecer em nós?

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