Pular para o conteúdo principal

Assim começa a pororoca

A fala era mais ou menos assim:
"O Rio Amazonas começa com um pequeno gotejar lá na nascente e as suas águas vão se formando ao longo do seu curso e tomando força e formando a pororoca, até que ao chegar ao encontro do mar já é tão grande que poderia enfrentá-lo" - Jane, uma amiga que me ensina muito e me inspira profundamente, para além de incontáveis características invejáveis, especialmente porque ela já acompanhou e participou de processos suficientemente frustrantes, mas guarda a leveza de quem sabe o poder dos sonhos e a força da persistência e por isso, não abre mão de acreditar na luta por um país justo e sustentável e pelo resgate de valores da dignidade humana.

E como tem significado essa descrição!

Normalmente, ao nos permitirmos o desafio de acreditar em um projeto, em um processo, na construção de algo novo e por aí vai, somos conduzidos pelo grandioso e o queremos desde o lançar dos alicerces. Tal a nossa decepção quando nos damos conta de que, na verdade, a quase totalidade das construções realmente consistentes, começa de modo inexpressivo - como assim categorizaríamos os pequenos começos. 

O grandioso nos mobiliza, nos contagia, nos incendeia com muito mais facilidade. Mas, não deveria ser a nascente de águas puras, ainda que poucas, a força que torna notáveis os nossos sonhos, que dá forças aos nossos braços e firmeza aos nossos pés? 

A nossa pressa por resultados catapulta a solidez das nossas construções. Temos centenas de provas dessa tragédia, mas continuamos a agir do mesmo modo, sempre. O pior, é que nos apressamos não necessariamente pela clareza de necessidade daquele resultado "x", que nos é caro e fundamental para prosseguir. O fazemos pelo simples desejo de usar resultados - com a força de memória de quem o "lançou" ainda fresca, para que usufruamos ou construamos benesses pessoais a partir deles. É a velha prática de nos servirmos de situações, coisas e pessoas, quando deveríamos nos dispor a servir.

Servir? 
Eu?
Sim, nós!

Servir deveria ser o alicerce da nossa existência, já que fazê-lo conforme o genuíno contexto de construir para o bem comum e reconhecimento do valor do outro independente da sua origem, deveria ser também, para nós, o vislumbre dessas puras pequenas gotas que se juntam a partir da nascente para se agigantarem no longo e exuberante processo de tempos, lugares, pressões, expansões, condições até desembocarem - já agora um rio grandioso, num confronto magnífico com uma das maiores forças da natureza, a grandiosidade do mar em seus mistérios, segredos e força,

Se ao comprarmos um apartamento guardamos o cuidado da observação (ou deveria ser assim) dos seus fundamentos e exigência de que neles sejam usados puros materiais de excelente qualidade, mesmo que isso demande mais tempo na construção e certos de que eles não serão percebidos, exceto pela solidez do prédio sob os ataques da natureza ou de outra ordem, como o próprio desgaste do tempo, a que for submetido, é preciso que mantenhamos o mesmo comportamento nos processos de construção daquilo que não nos exige tijolo, cimento e areia, mas o pensar a sociedade da qual fazemos parte, a vida comunitária em que estamos inseridos.

É necessário, hoje, um urgente processo de retomada do pensamento coletivo e isso, dada a proporção da força do individualismo a que chegamos, parece uma luta absurdamente desigual, de um nada contra um poderoso mar.  E quando percebemos que iniciá-la é assim, como o nascedouro de um rio, pequenas gotas, somos levados a dá-la por perdida e portanto, desnecessária, perda de tempo. Nos declaramos fora para evitar a frustração.

O desejo é que percebamos: assim começa a pororoca - do Rio da Amazonas, que nasce tão insignificante, mas que lança 12 bilhões de litros (a cada minuto) no Atlântico. Sim, aquele rio que começa de um gotejar de pequenas forças, insistentes, que vão se esgueirando nos caminhos, criando novos leitos e possibilidades e ganhando força até que, se não fosse pela cor e a ciência da sua origem e trajetória, poderia ser confundido com o próprio mar.

Aquele rio que ousa se assemelhar ao mar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Democracia e representatividade: por que a anistia aos partidos políticos é um retrocesso

Tramita a passos largos na Câmara dos Deputados, e só não foi provado hoje (2/maio) porque teve pedido de vistas, a PEC que prevê anistia aos partidos políticos por propaganda abusiva e irregularidades na distribuição do fundo eleitoral para mulheres e negros. E na ânsia pelo perdão do não cumprimento da lei, abraçam-se direita e esquerda, conservadores e progressistas. No Brasil, ainda que mulheres sejam mais que 52% da população, a sub-representação feminina na política institucional é a regra. São apenas 77 deputadas entre os 513 parlamentares (cerca de 15%). E no Senado, as mulheres ocupam apenas 13 das 81 cadeiras, correspondendo a 16% de representação. Levantamentos realizados pela Gênero e Número dão conta que apenas 12,6% das cadeiras nos executivos estaduais são ocupadas por mulheres. E nas assembleias legislativas e distrital esse percentual é de 16,4%. Quando avançamos para o recorte de raça, embora tenhamos percentual de eleitos um pouco mais elevado no nível federal, a ime...

Narrativas. Vida. Caos. Desesperança.

  Quando eu era pastora repetia com muita frequência, aos membros da igreja, sobre a necessidade de submeterem o que ouviam de mim ao crivo do Evangelho, aprendi isso com o bispo Douglas e com o Paulo, o apóstolo rabugento (e por vezes preconceituoso), mas também zeloso com a missão cristã assumida. Outra coisa que eu repetia era que as pessoas só conseguiriam se desenvolver se exercitassem a capacidade de pensar. Nunca acreditei num Deus que aprecia obediência cega, seres incapazes de fazer perguntas. E cada vez mais falo a Deus que se ele não conseguir se relacionar com as minhas dúvidas, meus questionamentos, as tensões do meus dilemas e mesmo cada um dos incontáveis momentos em que duvido até dele, então ele não é Deus. Será apenas um pequeno fantasma das minhas invencionices mentais, portanto, irreal. E por que isso aqui da gaveta das minhas convicções e incertezas? Assim? A nossa História é basicamente um amontoado de narrativas. Ora elas nos embalam na noite escura e fria. O...

Reforma?

Daqui 11 dias celebraremos 505 anos da reforma protestante.  Naquele 31 de outubro de 1517 dava-se início ao movimento reformista, que dentre seus legados está a separação de Estado e Igreja. É legado da reforma também o ensino sobre o sacerdócio de todos os santos, na busca por resgatar alguns princípios basilares da fé cristã, que se tinham perdido na promíscua relação do poder religioso com o poder político. E, co mo basicamente todo movimento humano de ruptura, a reforma tem muitas motivações e violência de natureza variada. No fim, sim, a reforma tem sido muito positiva social, política, economicamente e nos conferiu uma necessária liberdade de culto.  Mas, nós cristãos protestantes/evangélicos, teremos o que celebrar dia 31?  Restará em nossas memórias algum registro dos legados da reforma? Quando a igreja coloca de lado seu papel de comunidade de fé, que acolhe e cura pessoas e passa a disputar o poder temporal, misturar-se à autoridade institucional da política, e...