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Ah! Lá eu comia três vezes no dia

Foto: Luciana Conrado
- Fiquei sabendo que você ficou na casa da vizinha esses dias!
- Foi sim.
- Foi legal?
- Foi sim.
- O que mais você gostou lá?
- Tia, eu gostei porque lá eu comia três vezes por dia!

Ele é bem magrinho e de olhar estranho. Não. Olhar perdido.

Ele nunca sorri.

Sua mãe é "mulher da vida", dizem os vizinhos, e ela "é tão safada que nem esconde. Ela dá pra comprar drogas". Finalizam.

Ele tem uma irmã, cuja vida se passa sobre uma cadeira de rodas, com quase zero controle sobre os próprios movimentos.

Ele também tem um irmão que vive por aí, ora sob as sombras de pequenos delitos, ora sob a completa escuridão da barbárie de assassinatos a sangue frio, tendo apenas dezoito anos de idade.

E pai? Sem qualquer conhecimento acerca dessa liga ou o que significa essa relação.

Ele tem apenas 11 anos de idade e é mais um garoto favelado, infância perdida, sem destino, sem oportunidades e com um peso enorme sobre os seus ombros: sobreviver.

E o que somos capazes de fazer para sobreviver?
Pense bem antes de responder.

Alguma vez você já se viu sem qualquer referência, em uma situação prolongada de perigo?

Ai, essa criança sem afeto, sem suporte, sem referência positiva, de repente se vê três dias sem alimento, à míngua, "se virando" como pode e à sua frente, a irmã portadora de necessidades especiais, disputando um pedaço de comida com cinco gatos e há três dias usando uma mesma fralda descartável, em completo estado de miséria.

  • Consegue imaginar o que se passaria com você em situação semelhante?

Agora, você consegue se transportar para o universo de uma criança nessas condições?
Não faltou só o pão, ou o lanche, ou o almoço, ou outra refeição. É a completa ausência. Completa. Falta tudo.

E em que lugar essa coisa acontece?
Na África? No sertão nordestino?
Não. É no Distrito Federal, numa distância aproximada de 15 km do Palácio do Planalto. Ali, naquela terra cuja lei é o retorno que o abandono pode dar: perdas após perdas. Perde-se o sentido de ser, por não sabê-lo existir e aí, qualquer coisa é válida, roubos, violência, abusos, lançar-se a qualquer coisa que signifique uma possibilidade de afirmação, de ser.

Ser invisível, dói.
Não receber afeto, dói.
A fome, dói.
Não ter significado, dói.

Mas são pessoas, aquelas crianças que ali o nosso sistema destrói. E nós as cobramos que tenham firmeza de caráter e que façam as escolhas certas, quando as renegamos, abandonamos e por elas somos capazes, no máximo, de dó.

Saber que essas situações são apenas um pequeno retrato do que acontece no nosso país, penso, deveria nos consumir e nos provocar à decisão de cada um, segundo aquilo que lhe foi concedido de vocação, focar às suas energias, suas melhores forças e o vigor dos seus dias a buscar desfazer as prisões desse sistema, que vigoram e mantém esses nossos irmãos em tais condições.

Sabe, eu não posso, por exemplo, me dar por feliz quando os meus sobrinhos tem boas roupas, boa alimentação, uma casa organizada, limpa e adequada à habitação humana, tem acesso a lazer e cultura, à educação e ali, bem ali, perto de mim, há milhares de crianças com a mesma idade deles que nada disso possuem. Não tem meu sangue, mas são meus irmãos de pátria.

Isso não pode ser aceitável.
Isso não pode não me comover.
Isso não pode não me mobilizar.
Isso não pode não me levar a buscar uma solução.

Não se eu carrego uma Bíblia, a que chamo de Sagrada.
Não se eu me declaro cristã.

Porque essa Bíblia diz que isso é uma abominação.
E esse tal Cristo, se doaria para servir numa causa assim.

Mas, e nós? E nós?
Que o Espírito Santo nos convença de que o reino de Deus não se manifesta na opulência dos nossos templos, mas na vida, na pessoa humana pela qual o Cristo se deu, por quem morreu, e em que Ele continua a acreditar.
Que nós olhemos ao nosso redor com a indagação de qual é a minha responsabilidade na construção de um Brasil cujo alicerce seja a justiça?

Que comer três vezes ao dia não seja a coisa mais legal no dia das nossas crianças.

Que as nossas crianças possam ter a oportunidade de entender o que significa dignidade.

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Sob a inspiração de uma conversa com uma amiga, no começo da noite.
 

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