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Do lixo, no lixo, para o lixo?


Antigamente, muito facilmente eu guardava os nomes das pessoas. Antigamente aliás, eu guardei quatrocentos e oitenta e sete nomes completos e destes, quase todas as datas de nascimento e outras informações, como de telefones, por exemplo. mas isso foi bem antigamente.

Hoje? Bem, mal consigo guardar um nome, embora eu ainda permaneça guardando muito bem as histórias. Eis aqui uma.

Dona Maria é como muitas Marias que provavelmente conhecemos, comum. Mas, como a Maria mais famosa de que ouvimos falar, é ímpar.

Dona Maria pariu dezenove vezes, tem quarenta e cinco netos, possui marcas inconfundíveis de uma vida sofrida e do lixo tira o seu sustento, em pesadas jornadas de doze a quatorze horas de trabalho.

Rosto queimado, pele envelhecida, mãos calejadas, poucos dentes. Mas é uma lágrima, tímida e significativa, que mais fala no momento em que ela conta sobre como a sua vida foi posta no lixo.

Não. Não foi quando as circunstâncias de extrema necessidade a empurraram para  a única atividade laboral que tinha condições de abraçar, ainda que ao preço da sua dignidade.

Dona Maria se viu no lixo e como parte dele, numa manhã cinzenta de domingo, quando pariu a sua quinta cria e não a pode ter nos braços.

No lixo foram colocadas sua gestação, sua cria e toda a sua trajetória até aquele domingo e, Dona Maria vê também, ali no lixo amontoada, a sua sanidade: "a senhora endoideceu?", é a única resposta recebida às indagações sobre o paradeiro da sua cria.

No lixo fica a sua dignidade.
No lixo abafa-se o choro da sua cria.
No lixo esconde-se a sua trajetória.
O lixo, porém, passados dezenove anos, não apagou a sua memória.

É domingo, novamente. Dia das mães.

Dona Maria pariu outras quatorze vezes e suas mãos tem pressa para disfarçar a sua insegurança. Ela faz muitas coisas, menos conter aquela tímida lágrima que denuncia a dor não esquecida, tão viva, ainda agora e que ali extrapola.

Do lixo, nesta - como em muitas outras cidades, é possível perceber mais que o odor do chorume. Há gente e suas histórias. Há memórias não soterradas. Há vidas não descartadas.

No lixo, porém, da nossa pressa cotidiana, há um zelo desmedido por esconder a nossa incapacidade de lidar com a nossa monstruosa desumanidade, personificada na inversão de valores, quando descartamos gente e suas histórias e valoramos coisas, no julgamento de que estas sim é que podem nos significar.

O chorume das nossas emoções é o que resta desse processo.  E nele então, nos coisificamos e já que emoções apodrecidas, a tudo contaminam e apodrecem, necessário é que anulemos a humanidade que nos seria própria. E aí, abrimos mão da sensibilidade, do toque despretensioso, do afago não maldoso, do olhar carinhoso, da gentileza, da compreensão de que somos um todo, porque só uma robusta máquina, pensamos, pode suportar o odor da nossa desumanidade. Achamos que trancafiados em nós mesmos e vivendo para nós, ficaremos imunes à deterioração em razão daquele chorume que de nós escorre.

Ei! Máquinas, ainda que as mais robustas e sofisticadas, deterioram e, passado o seu ciclo útil, para onde vão? Para o lixo.

O lixo que nos enoja.
O lixo que nos apavora. 
O lixo que nos devora e nos faz, lixo.

Reciclar as ações das nossas escolhas. 
Recriar a nossa humanidade. 
Fazermo-nos gente outra vez, é a nossa necessidade agora, para que guardemos em nossa memória gente e suas histórias e não apenas números de objetos que nos foram úteis em determinado tempo, antigamente, já agora, lixo.

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