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Mulheres, uma identidade em movimento

Reproduzo aqui, um  brilhante texto da querida amiga e mantenedora de saudáveis utopias, Jane Maris Vilas Bôas. Uma reflexão ampla e importantíssima feita no Dia Internacional da Mulher. Vale muito apena!
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Este título faz refletir sobre o fato de que ter identidade social, quando se é mulher, ainda chama atenção.

Ter identidade, nesse contexto, é ter uma história e ser autora dessa história. Ter tido oportunidade de fazer escolhas, mesmo quando o espaço da escolha era pequeno e apertado.

Nossa cultura, na América o Sul, tem semelhanças no que diz respeito às mulheres. Nascemos em famílias em que as mulheres foram educadas para a submissão, para a renúncia aos sonhos, para baixar a cabeça, para a resignação a um lugar secundário no nosso meio social.

Havia profissões designadas para nós. Havia destinos já desenhados para nós. Havia expectativas de que cumpríssemos um papel milenarmente pensado para ser o de mulher. Havia mecanismos para controlar nosso olhar, nossos gestos, nossas roupas, nossa expressão.

Nosso universo era a casa, o espaço doméstico, onde esperávamos os homens que circulavam na rua, conheciam os assuntos públicos, sabiam os códigos de interpretação dos assuntos importantes, ocupavam as posições de comando e deviam ser servidos.
Reproduzíamos esse roteiro ensinando as nossas filhas a baixar a cabeça, esconder a voz, não olhar no rosto, não fazer afirmações de vontade.

Nossa literatura está cheia de mulheres assim. Nossos documentos estão cheios de mulheres assim. Nossa história não era contada porque coadjuvantes não tem história, se acoplam às histórias alheias.

Nossas estatísticas estão cheias de mulheres agredidas, machucadas, violentadas, assassinadas por quem elas amavam. No Brasil as estatísticas apontam para 300 mulheres agredidas por dia. São 62 mil agressões por ano. Em 68% dos casos as agressões são presenciadas pelos filhos. Em 72% dos casos as mulheres vivem com os agressores e dependem dele.

O século XX trouxe grandes mudanças culturais e dentre elas um novo lugar social para o feminino. Na verdade uma conquista das mulheres, no seu modo próprio de lutar, de buscar seus objetivos, de reagir ao modo dos oprimidos que só tem a força de sua causa como suporte.

Essa força que nasce da opressão tem um exemplo notável na Argentina onde chama atenção as “Mães e avós da Praça de Maio”. À violência mais dura, ao exercício do poder mais cruel, à insanidade da convivência social adoecida elevada ao extremo, à perversão total da política, elas opuseram a demonstração do amor. O amor sofrido, dilacerado pela perda de filhos. Seus lenços brancos mostravam ao mundo que elas estavam ali não fazendo guerra, não revidando, mas encarando a face desumanizada do regime militar com a doce face da mãe. Elas disseram ao mundo que a Argentina não estava perdida numa escalada de desumanização porque elas garantiam essa profunda humanidade de uma mãe chorando, pedindo notícias, querendo ter de volta o filho. Era o paradoxo na praça. Nesse momento essas mulheres não eram só argentinas, elas eram o feminino do planeta, representando todas as mulheres que podem sofrer profundamente pelos destinos de seus filhos. O mais sublime amor encarando a mais bruta realidade do poder.

A nossa época, final do séc. XX e início do XXI, viu mudanças muito rápidas na sociedade, um progresso positivo em muitos setores da vida humana – na área acadêmica, na política, na governança, no mundo empresarial, na área de serviços e também na condição feminina. Mas são tempos de paradoxos, há mulheres comandando países, porém milhares delas ainda vivem na condição cultural mais opressiva. 

Por exemplo, a “feminização” da pobreza no Brasil. Enquanto os programas sociais do governo retiraram, 50% de pessoas da condição de extrema pobreza, entre 1993 e 2008, as famílias chefiadas por mulheres que viviam na miséria em 1993 eram 5,5 milhões e em 2008 eram 5,2 milhões. Mal se alterou o número. Em alguns países árabes, mulheres são proibidas de dirigir carros. Em alguns países africanos, as mulheres são negociadas pelas famílias para serem esposas em casamentos poligâmicos até intergeracionais.
Há pesquisas da ONU dando conhecimento de um contingente de até 140 milhões de mulheres que sofreram amputação genital.

Mas há coisas a comemorar também. Posso citar no outro prato da balança:
Não há mais tabus profissionais para carreiras femininas. De astronautas a mestre de obras, de professoras a cientistas, de caminhoneiras a presidentes de conglomerados empresariais, as mulheres tem as mesmas possibilidades que os homens sem vedações culturais. O impedimento é apenas a oportunidade social de cada um. 

Na América Latina 40% da população são governados por mulheres.

Conforme dados da União das Nações Sul-americanas hoje as mulheres compõem 53% do contingente Universitário da América do Sul. Na comunidade global, há hoje 10 mulheres ocupando cargos de Chefe de Estado ou de Governo, em todos os continentes.

Considero que daqui para frente temos que fazer a luta social pela justiça, pela equidade, pela democracia, pela sustentabilidade ambiental, pela ética na política com mais liderança das mulheres. Não contra os homens, mas somando.

Penso que nos falta uma cultura de justiça em que além da defesa dos direitos das mulheres, as próprias mulheres eduquem seus filhos homens para respeitar e demandar a contribuição feminina na construção de um mundo mais solidário, mais democrático, em que as relações entre todas as formas de vida sejam equilibradas. 

A falta de oportunidade de realização dos seus potenciais e talentos aflige homens e mulheres. A pobreza por exploração econômica e a exclusão social são violências que atingem ambos os gêneros. Por isso, na minha opinião, o desenvolvimento social e econômico que queremos é um desafio que exige a contribuição da inteligência masculina e da feminina, das características empreendedoras dos homens e das mulheres. É um esforço de solidariedade e não de disputa.

Em nossa cultura as mulheres tem um forte papel de agente educador das novas gerações dentro da família. Elas interagem mais com os filhos, portanto tem mais oportunidade de transferir valores como ética, honestidade, integridade, respeito à vida e aos interesses coletivos, crítica ao egoísmo, ao consumismo, à desumanização de nossas metrópoles. É nesse momento que se forma a percepção das pessoas e sua decorrente visão de mundo. Portanto, há aí um momento privilegiado para atuação das mulheres. 
Por outro lado, a visão feminina e certas características do feminino são fundamentais para que a visão da sustentabilidade, que implica respeito a processos naturais, cuidados com os limites de certos recursos, etc. possam se estabelecer. Isso tudo pode vir pela ação das mulheres, mesmo aquelas que não cuidam de uma família.

Portanto, concluo dizendo que dá certo lutar, se "esforçar e ter bom ânimo", como recomenda o texto bíblico, ser honesta, ser íntegra, e desejar amorosamente que o futuro seja mais justo, mais solidário e mais feliz para todas e todos.

Por, Jane Maria Vilas Bôas

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