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Quando os gritos silenciam o diálogo, o que sobra?

Diz o livro sagrado dos cristãos, que todos os dias o Eterno tinha um encontro marcado com a sua criação na viração do dia. E assim, sob o largo emblema do pôr-do-sol, dialogavam.

Talvez tenha surgido aí a designação da hora feliz ou o saudável apreço que temos pelo lugar mais sagrado de uma casa: a cozinha, quando à mesa os corações se encontram e um ao outro se entregam às palavras que os conectam.

À mesa desfrutamos dos sabores da partilha de refeições temperadas com amor, das bebidas que passam pelo refinamento alquímico do olho no olho honesto que não constrange. Mas à mesa também pode surgir o medo transgredindo a sacralidade da transparência relacional para convencê-la a tomar para si, por vestimenta honrosa, o adorno da culpa. 

Foi assim naquela viração do dia, quando as criaturas encerraram o diálogo, se viram nuas e se vestiram de acusação. Aos gritos.

Quando leio o relato bíblico, logo ali no terceiro capítulo do Gênesis, sou levada a pensar que o Eterno queria começar uma conversa conosco. Talvez quisesse nos chamar atenção à potência do diálogo, ao quanto precisamos nos dedicar a proteger os espaços das conversas francas, respeitosas, mantidas sobre a mesa da empatia, recheadas sempre e necessariamente da fraternidade que nos faz humanidade.

Diálogo se apresenta no latim como dialõgus e sua raiz grega nos ensina que a palavra faz referência a um "processo de conhecimento através da palavra". Desse modo, o prefixo 'dia' conceitua um 'através de', estabelecendo relação à palavra e 'logos' nos aponta o saber que se manifesta dessa relação e interação.

Quando os gritos silenciam o diálogo, o que sobra?

Provavelmente tenhamos chegado ao momento divisor de águas em que, ou nos disciplinamos para (re) aprender sobre diálogo, ou apenas nos sobrará morte (em vida).

O Paraíso pelo qual pulsa as nossas almas, está claro faz tempo, é o encontro, a interação entre os viventes, a conexão, a vida comunitária. É a palavra que produz esse ambiente.

Nós dizemos, e estamos desesperados por vida, mas rompemos a todo instante com a expressão distinta daquela que vocalizamos e não conseguimos mais dialogar.

O silêncio da reflexão, do acolhimento à voz dissonante ao conceito que valorizamos verdade dá lugar ao vazio existencial porque a palavra não encontra ambiente relacional que produza conhecimento distribuído.

E vem a ira, a disputa cega, as certezas escuras, a acusação, a imposição de culpa de rompimento ao outro, nunca eu que já não dou, também, espaço à palavra e seus plurais saberes.

Expulsão é a sentença que nos damos. Não o ouço. Não me ouves. Estamos nus. Expostos em nossas misérias existenciais. Não nos reconhecemos. Não nos queremos juntos.

As palavras, antes cheias de significado que criavam e davam sentido, se refaziam e multiplicavam, agora são ecos no deserto pálido e violento das nossas razões.

Como ainda atribuiremos vitória a espaços que nossos corpos ocupam se não há pacto sincero pelo diálogo?

Como definiremos exitosas nossas jornadas se suas margem forem apenas os limites das nossas próprias vozes?

Como atribuiremos valor ao nosso fazer se nos tornarmos estranhos uns aos outros e a mesa da delícias se transformar em palco de constrangimento?

Diálogo é responsabilidade comum, fruto de interação por valor sincero à voz do outro, por interesse real à palavra, mesmo àquela não compreendida a priori, mas colocada sob a consciência de que o encontro de palavras é capaz de produzir significado pela potência transformadora das relações interpessoais.

O diálogo gera vida. 

Amamos a vida? Nós a queremos, de verdade?

Precisamos (re) aprender o diálogo.


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